Todas as noites ela se deita com as almofadas na mesma posição: a fazerem um ângulo de 90º, acima da sua cabeça e ao lado do seu corpo. Abraça a que lhe fica paralela, coloca a cabeça no meio, olha mais uma vez ao redor no quarto, semi-iluminado pelos feixes de luz emitidos pelos candeeiros da rua que entram pela persiana entreaberta, fecha os olhos e adormece.
O ritual é o mesmo desde há 3 meses atrás. Desde que ele foi embora.
Tantos anos em que dormiu sozinha, em que chegou a amaldiçoar aquela cama enorme, sempre vazia e triste, sempre demais para si, e parece que os poucos meses em que ele esteve consigo bastaram para já não conseguir adormecer sem pelo menos fingir que está acompanhada, sem aquela almofada onde poisa a cabeça ser um peito ou umas costas. Fecha os olhos e quase que ouve um coração a bater e uma respiração leve, quase que adivinha o cheiro e a textura de uma pele...
A janela fica aberta para ouvir os barulhos da noite e não se sentir tão só. Aprendeu a gostar de acordar com a invasão do Sol pelo quarto dentro e ver que tudo à sua volta está igual, que aquele dia vai ser igual aos outros todos dos 3 últimos meses.
Assim acorda, levanta-se e vai ao quarto-de-banho, sentindo com desagrado o frio dos azulejos nos pés descalços. Olha de relance para o espelho, mas detém-se nos olhos inchados de quem anda a dormir pouco e na cara demasiado redonda.
Em tempos achou-se bonita. Apesar dos complexos serem os mesmos de sempre, houve tempos em que não tinham a influência que agora têm no seu amor próprio. Aquelas gordurinhas a mais que sempre ali estiveram, o cabelo demasiado liso e sem ponta de graça, as bochechas que os outros acham "fofinhas" e que ela odeia, coisas que sempre a chatearam, mas que nunca a impediram de se sentir bonita. Até agora.
Ele nunca lhe disse que a achava bonita. Provavelmente não achava.
Não sente a falta dele, apesar de tudo. Era boa pessoa, tinha boas intenções, verdadeiro, sincero e leal... mas um chato. Sempre a falar nos mesmo assuntos (chatos), sempre igual a si mesmo, sem uma ponta de irreverência, sem um atrevimento. Incapaz de uma loucura, de uma estupidez qualquer que a fizesse rir. Incapaz de surpreender. Até o sexo era chato, mas pelo menos sabia bem ter alguém com quem partilhar tanto espaço.
Se calhar não eram compatíveis. A tal da química. Ele não a fazia perder a cabeça, nunca a fez querer arriscar o que quer que fosse por ele e a ideia de passarem 3 ou 4 dias juntos de férias num sítio qualquer era um pavor. Coitado, tinha as suas qualidades. Mas ela queria mais. Queria os altos e os baixos. Queria a saudade e a ansiedade. O desejo incontornável, a incapacidade de resistir e a paixão.
No entanto, ele apareceu na altura certa: ela precisava de alguém que lhe desse estabilidade e teve-a. Ficam algumas boas recordações, porque houve alguns bons momentos. Fica a sensação de que aquilo tinha que acontecer - era um daqueles casos pendentes do passado - e a certeza de que também tinha que acabar.
Sorri com esta ideia de fatalismo, vira as costas ao espelho e volta para a cama. Não tem sono, mas decide ficar ali por mais uns 5 minutos, abraça-se à mesma almofada e fecha os olhos.
As noites custam a passar e custa amanhecer sozinha, dia após dia, com aquela sensação amarga de que a juventude lhe está a passar ao lado. Lembranças antigas e ideias tolas preenchem-lhe os pensamentos antes de adormecer, pega no telemóvel vezes sem conta, marcando automaticamente aqueles números antigos que sabe de cor, que se havia proibido de voltar a marcar, de pessoas que já não fazem parte do seu presente e que lhe assombraram o passado. Desses números, ela tem a certeza, viria uma resposta. Mas nunca chega a ligar.
No fundo, ela sabe. Sabe do que é que precisa e que a solução não é imediata. Não está bem assim, mas precisa de estar. Sozinha. Precisa de um tempo para si, para se recompor, para recuperar a beleza interior e exterior, para se sentir ela novamente.
É em si que está a resposta. Na sua força de vontade e na sua capacidade incrível de conseguir tudo o que quer - sempre conseguiu, o que aconteceu que a fez parar? Na sua personalidade forte, capaz de amar e odiar, capaz de proteger e atacar, leal, sincera e com princípios definidos. Na sua inteligência - precisa de voltar a acreditar no seu valor, pois até essa certeza foi perdendo. No seu poder, aquela coisa indefinida que toda a gente tem, mas que nem todos sabem usar. Aquela presença estranha à sua volta, mas que vem de dentro. Aquilo que sabe ter construído ao longo dos anos, que foi interiorizando com o que aprendeu da vida e que sabe aplicar - não pode deixá-lo morrer.
Afinal de contas, todos eles lhe disseram: "Tens magia." E ela sabe que sim.
Agosto de 2009
Fotografia: De Ellen von Unwerth